Julho de 2018. O futebol argentino lambia as feridas abertas pela eliminação para a França nas oitavas de final Copa da Rússia, e o clima no país era semelhante ao do Brasil pós-7 a 1. A palavra da moda era “refundação”.
A solução apresentada pelo presidente da AFA (Associação Argentina de Futebol), Claudio “Chiqui” Tapia, foi a aquisição de um centro de treinamento na Espanha para que os jogadores que atuam na Europa pudessem se reunir durante as folgas nos clubes para treinar sob as ordens do técnico da seleção – sem a necessidade de viajar até a América do Sul.
– Todos os jogadores têm as segundas-feiras livres. Se temos um CT na Espanha, eles estariam a três ou quatro horas de viagem. Quando jogamos pela Eliminatória, os jogadores chegam aqui sem tempo de trabalhar […] Eu creio que todos os jogadores com possibilidades de jogar na seleção aceitariam. É a única possibilidade que temos para trabalhar como uma seleção – disse o cartola na época.
Cesar Luis Menotti, o lendário técnico campeão do mundo em 1978, detonou a ideia. Num áudio de WhatsApp que vazou e parou na imprensa, Menotti disparou:
– Isso é terrível. Me dá vergonha. Me dá vontade de ir morar no Uruguai. Isto não se pode aguentar. Então o técnico pode armar uma seleção europeia e os daqui se danem? Quais são os craques que a Argentina têm lá fora que não têm aqui? Não posso acreditar. Quando vi isso, comecei a me sentir mal. Senti vontade de pegar um revólver e matá-los.
Menotti não pegou um revólver, não matou ninguém. Ao contrário: seis meses mais tarde, em janeiro de 2019, ele aceitou um convite do próprio Tapia e se tornou diretor de seleções da AFA. Não, o futebol argentino não foi refundado – e seus problemas estruturais continuam lá.
O Campeonato Argentino é um exemplo de que o país não vive um conto de fadas no futebol local. Continua sendo impossível prever qual será o formato ou mesmo quantos times vai ter a próxima edição da primeira divisão nacional.
E isso se reflete na Libertadores. Seus clubes não chegam à final desde 2019, quando o River perdeu para o Flamengo. No ano anterior, o superclássico entre Boca e River, pela decisão do torneio continental, que deveria celebrar o futebol argentino para o mundo, teve que ser despachado para Madri por questões de segurança.
Uma Argentina europeia
O país não consegue mais reter talentos. É cada vez mais comum que jovens promissores como Fausto Vera (22 anos), hoje no Corinthians, e Giuliano Galoppo (23), no São Paulo, sejam seduzidos pelo dinheiro do futebol brasileiro.
Mas quatro anos e meio depois daquela crise profunda, daquela solução mirabolante apresentada, a Argentina está de volta à final da Copa do Mundo – e com um time que seria totalmente formado por atletas que atuam na Europa, se não fosse pelo goleiro reserva Franco Armani, do River Plate.
O impacto de Menotti foi mínimo nessa guinada, já que sua figura é mais simbólica do que executiva. A operação de resgate da seleção argentina no cenário mundial tem mais a ver com as prioridades do presidente da AFA: a seleção em primeiro lugar. O resto vai se resolvendo.
– Desde que chegou à AFA em 2017, Claudio Tapia se proclamou “o torcedor número um da seleção”. Com o tempo, traduziu o slogan em fatos. Investiu na estrutura onde treinam as seleções profissional e de base em Ezeiza, na grande Buenos Aires, e se aproximou muito de Lionel Messi e do próprio Scaloni – conta Alejandro Casar, jornalista do diário La Nación e autor de “Pasó de Todo”, um livro com bastidores da AFA e da Fifa no contexto do Fifagate, o escândalo de corrupção que abalou o futebol mundial em 2015.
A afinidade Tapia-Scaloni-Messi se mostrou importante ao longo destes anos. Sobretudo depois da Copa América de 2019, quando a Argentina caiu para o Brasil, por 2 a 0, nas semifinais. Até aquele torneio, Scaloni tinha status de interino. Ex-auxiliar de Jorge Sampaoli na Copa de 2018, foi ficando no cargo por falta de opções viáveis.
Quando a pressão chegou ao ponto mais alto depois do revés de 2019, Tapia renovou o contrato de Scaloni até 2022. E Messi saiu de sua discrição habitual para bancar o treinador.
– Foi um acerto que o tenham deixado fixo, para que possa ter a tranquilidade necessária para trabalhar na seleção. Scaloni tem ideias claras, sabe enxergar o futebol e sobretudo sabe passar bem suas ideias. É fácil entendê-lo e lida muito bem com o grupo – disse Messi assim que o contrato de Scaloni foi renovado.
Ao contrário do que costuma acontecer com outras decisões relativas ao futebol argentino, a seleção viveu um período de calmaria duradoura nos últimos quatro anos. O título da Copa América de 2021 e uma Eliminatória sem sustos (ao contrário de 2018) tornaram tudo mais fácil para Scaloni.
Pela primeira vez desde 2002, um técnico chegou à Copa do Mundo depois de ter treinado o time por quatro anos. E mais: Scaloni chegou ao Catar com o contrato renovado por mais quatro anos, até 2026. É possível especular se tal compromisso seria mantido em caso de fracasso nesta Copa.
Mas é correto afirmar que tal ato permitiu mais tranquilidade ao técnico para lidar com as turbulências como a derrota para a Arábia Saudita na estreia na Copa do Catar, a necessidade de mudar o time, de barrar jogadores que durante a maior parte do ciclo foram titulares absolutos. Scaloni sempre teve o apoio de quem importava: do presidente da AFA e de Lionel Messi.
E o centro de treinamento de Marbella, “única possibilidade” de sair da crise de 2018 e que levou Menotti a pensar em pegar em armas, até saiu do papel e serviu para as seleções de base. Mas nunca foi usado pela seleção principal.